Fugas (Entre a Representação e o Prazer)

23.01.20 Rui Veríssimo Design

(…) não há prazer que não seja representado. (John Donne)

A pintura é a tarefa da representação. Há mais de 30 000 anos que assim é e assim se justifica. O discurso ou a narrativa da pintura, a afirmação da individualidade (autoral/estilística), o impulso de ruptura ou a comodidade da tradição, o lucro ou a glória serão intenções segundas. Quando o pintor representa, apresenta um/o presente. Esse presentear contínuo, que é trazer à luz o inexistente para que os outros o vejam e recebam, é o seu verdadeiro desígnio. E, tal como todo o acto autêntico de presentear, vem envolvido em prazer. O prazer da pintura acontece, pois, pelo e no acto de representar. Quer se trate de medos ou de mitos, divindades, tragédias humanas, encomendas, revoluções, estados de alma. Assim, ao reflectir o mundo nessa constante dádiva representativa, a pintura justifica-se perante o ser humano. Pode a arte, a partir daí, morrer tranquilamente, ainda que, como escreveu Armando Azevedo, venha longe a sua morte (o fim da arte significaria o agonizar da condição humana).

A pintura de Teresa Bravo tem sido a reunião e o testemunho desse desígnio ancestral de representar com o prazer de trazer à luz o representado. Narrativa coerente, que a artista vem construindo no seu modo próprio de revelar universos (sistemas de lógica poética) com a coragem de não mostrar realidades que ofuscam e que revelam quase sempre muito pouco. Teresa Bravo — em jeito de fuga musical barroca — apresenta variações sobre o tema que vem perseguindo mas acrescenta agora uma aparente literalidade: a fuga, ela mesma. Se no passado recente, Napoleão e Mariscal, Demócrito e o Cavalheiro Azul se passearam por planos/fundos de batalhas monocromáticas, por interiores vermelhos, por campos de néctares e outras superfícies com títulos fantasiosos, essas cenas então tecidas pela opacidade da tinta que desvendava e recortava as figuras, desapareceram! A coreografia passou a acontecer fora do palco. A composição abriu-se à participação de todos, sem maestro e sem partitura. Dir-se-ia que Frederica Verde, Maria de Branco, Saltimbanco de Laranja e demais personagens recusam agora o seu contexto e as suas circunstâncias, contrariando as ordens ditadas pelas leis do seu criador, pondo-se ao serviço dos seus intérpretes. Povoam paredes de galerias, de salas e edifícios, rejeitando os rectângulos de outrora (de ouro ou demais formatos). Ainda que a sua natureza seja a textura de cores, de gestos (representações humanas) limitados pelas suas silhuetas híbridas, enganadoras, é a própria natureza da pintura que se celebra neste bailado, nesta obra artística. Preparemo-nos para o deleite de assistir e para o prazer de actuar!

António Modesto Nunes
Porto, Outubro de 2013