Revelações de Tecidos Mágicos

24.01.20 Rui Veríssimo Design

Apesar de tudo, vem ainda longe a morte da arte. Agonizará com a agonia do humano. Não haverá, obviamente, arte inumana. Nem sequer, em menor evidência, desumana. “A arte é o homem” talvez seja a mais gasta das frases, provavelmente por ser a mais pertinente, a mais lúcida, a mais transparente.

A arte é misteriosa e complexa ao reflectir os mistérios e complexidade da vida, nos vários e variados conceitos. Se as causas do homem – da primeira à última – fossem inequivocamente evidentes, inquestionável seria a função da arte, cuja difícil compreensão não está na diminuta razão de ser, mas nas inúmeras vias que segue, nas multiplicáveis formas em que se manifesta. A sua fragilidade e enfraquecimento não resultam de não lhe vermos função, mas de lhe atribuirmos diversas, quantas vezes em excesso e nebulosidade.

O valor da arte, para uns, está na beleza, no prazer estético; para outros, no conhecimento; ainda para outros, na emoção… vêem-na uns como criação; outros, como expressão; outros ainda, como comunicação. Lembro Renato De Fusco e a sua (di)visão da contemporaneidade artística em seis linhas: da formatividade, da expressão, do onírico, da arte útil, da arte social e da redução.

Felizmente e contrariando negras profecias, a arte não morreu. Nem tampouco a pintura perdeu razão de ser, validade, funcionalidade, força na sua poética intervenção.

Mesmo parecendo ridículo simplismo, digo convictamente ter a pintura uma única função: Fazer ver. Fazer ver, disjuntiva ou copulativamente, exteriorizando o mundo interior do homem, criando novas formas, fazendo surgir o antes invisível.

Paul Klee tem razão: “A arte não representa o visível, torna visível”.

Vem tudo isto a propósito da(s) pintura(s) de Teresa Bravo, obra(s) a que me referirei, explícita e especificamente, a partir deste momento.

São cromáticos e poéticos registos (re+gestos) eternizando a globalidade e heterogeneidade de gestos estéticos. São em plural eloquência, expressão, cor, formatividade, criação, descoberta…

Em síntese, diria que são, em vários planos, invenções, desocultações, revelações, mostrando-se como verdadeiros paradigmas do “fazer ver”, missão sagrada da pintura… e da arte.

Trata-se de criações desenvolvidas em dois planos, digamos, invertidos, de evidente originalidade e ineditismo, mas de rigorosa e exemplar causalidade artística.

Por força do hábito e da expectativa, vemos, num primeiro olhar, várias figuras, sem dúvida surpreendentes, misteriosas, fantásticas… mas convencionalmente sobrepostas a uma monocromática superfície. Porém, mais rica contemplação mostrar-nos-á que, afinal, o “pano”, não rigorosamente de cor lisa, está por cima de riquíssima policromia que espreita em recortes, em perfurações… visíveis como hieróglifos, iluminuras, símbolos, ícones, figurantes… de uma comunicação-outra.

Adivinhamos, parcialmente, claro, o processo criativo da Autora:

A brancura da tela-ecrã, susceptível de tudo receber e, portanto, de tudo mostrar, cobre-se de uma infinidade de registos numa explosão de cor, em abstracção pura, que demasiada é a luz, totalmente ausentes estão as sombras e linhas denunciadoras de volumes e figurações.

Para Miguel Ângelo, o seu “Moisés” já vivia no mármore em bruto, bastando ao Escultor, encontrado e identificado o personalizado bloco, retirar-lhe a pedra em excesso, a que escondia, aprisionava e paralisava o Profeta. O “mármore” de Teresa Bravo é pintura abstracta, onde a exuberância de cor, luz, energia, dinamismo… escondem narrativas, descrições, objectos concretos, formas terrenas…que só a Autora capta.

Seguindo Brancusi, a arte contemporânea vai da física para a metafísica, do pássaro em direcção ao ovo. Assim procede Teresa Bravo, mas apenas numa primeira fase de cada tela, já que, na segunda, na mais criativa e fabulosa operação, faz a caminhada inversa, agora da metafísica à física, fazendo lembrar Magritte que, observando o OVO como modelo, pinta o pássaro já em pleno VOO. (Bendita língua que em “VOO” e “OVO” tem as mesmas letras!)

Nessa segunda operação, um tecido de registos, qual pano monocromático, vai cobrindo cada pintura polícroma. Esse “pano” está, porém, aqui e ali esburacado com perfurações, metamorfoseando-se em antes nunca vistas figuras vivas, dançantes, esvoaçantes, movendo-se em cenas e cenários de um mundo-outro.

Uma nova inversão se nos depara: o “fundo”, afinal, é um primeiríssimo plano; as figuras, essas, saltando para cá do “primeiríssimo plano”, recuam bem lá para o fundo… mas voam, de repente, para nós. É o nosso vaivém a esse fantástico paraíso, jamais encontrável em horas e dias úteis.

Por regra, pinta-se sobre telas brancas. Em poética simbologia, porém, diz-se que Van Gogh fazia nascer os seus quadros cobrindo superfícies negras…

Teresa Bravo utiliza pinturas (próprias) como suportes para as (próprias) obras, retirando, como Miguel Ângelo, mutatis mutandis, o que está a mais, criando planos invertidos, de invertidos registos, imagens horizontalmente ao contrário, fazendo dos nossos olhos um ioió, melhor, um pingue-pongue, um baloiço, paradigma e eminência da estética, de movimentos intransitivos, autotélicos, de quem corre, dança, voa… naquele Tabor donde não se quer ser expulso, desterrado… para qualquer via-sacra.

Em cada quadro, em cada ecrã de uma só cor, vemos pequenas mas múltiplas formas projectadas, que oscilam, pelo baloiçar dos nossos olhos, entre perfurações e figurações que alegremente nos saltam à vista. O vazio enche-se, torna-se corpo, ganha vida. Do “nada” surgem histórias de encantar, com personagens de uma nova mitologia.

Confirmamos que a arte não tem apenas poder, mas vontade própria, evoluindo em independência, determinando objectivos estritamente artísticos, criando formas em si, bem para além de imitações da natureza.

O valor da arte não é, isoladamente, o prazer, a beleza, o conhecimento, a emoção… – é, sim, a sua convergência e junção na heterogeneidade da mesma experiência, da mesma fruição, saber e sabor plenamente fundidos.

Teresa Bravo – que não cria para se expressar mas se expressa, sim, para criar – serve-nos ambrósia e néctar em mágica toalha. As deliciosas iguarias não estão sobre o pano, vão sendo reveladas, desocultadas pelos fios, pelo tecido com que, qual Ariadne agora urdideira, nos mostra o caminho não da ida mas da vida.

Há, inegavelmente, pintura feminina. Talvez o exclusivo de dar à luz esteja na origem de um especial modo de fazer ver.

Coimbra, Outubro de 2007
Armando Azevedo