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24.01.20 Rui Veríssimo Design

Apresentar uma pintora que começa a afirmar-se no nosso panorama artístico é uma responsabilidade pesada e, simultaneamente, um desafio muito interessante. Mas, Teresa Bravo não se iniciou só este ano, ou no ano passado. O seu curriculum tem uma boa década, e merece como destaque o cumprimento das etapas convencionais de aprendizagem, ouvindo e bebendo dos mestres o essencial das técnicas e do Pensamento da prática artística, subindo, degrau a degrau, a escada que leva ao patamar da mestria.

Nunca consegui perceber muito bem quais as razões por que tantos estudantes de Belas Artes abandonam os cursos a meio, quando não no início, lançando-se “a solo” por caminhos que são por vezes originais, mas que normalmente levam a becos sem saída, desde logo por falta de conhecimentos técnicos que lhes permitam desenvolver as suas ideias, mesmo quando estas são originais. Penso que ficam deslumbrados consigo mesmos, que se consideram génios e que, por isso, julgam poder e dever recusar as lições dos mestres, sempre “retrógrados” e cultores de formulários esgotados. Nada de mais errado.

É certo que na História da Arte Ocidental houve artistas que se alcandoraram nos mais elevados picos da Fama, fugindo dos ateliers e das academias, e prosseguindo sozinhos, mas entrando em tertúlias ou grupos mais ou menos formais, que de alguma maneira supriam a falta das lições continuadas. Mas são excepções, e excepções em tempos bem diferentes dos nossos, em que o número de praticantes das Artes era infinitamente menor, e em que a comunicabilidade reduzidíssima em relação ao que é hoje, o que os defendia de colagens a outros cultores das mesmas disciplinas, que a massificação da imagem actualmente, entre outros fenómenos, pode propiciar.

Devo dizer que admiro os estudantes que têm a humildade de ver e ouvir o que os mestres têm para lhes ensinar; os que no seu arbítrio adoptam ou não as soluções propostas, mas que respeitam as funções dos docentes; e sobretudo os que depois de tudo isto avançam vida fora, estribados nas convicções próprias, no seu gosto pessoal, no seu comportamento, seja ele qual for, e acabam por sobressair pela sua idiossincrasia.

A aprendizagem formal em escolas de Belas Artes permite ao artista, melhor dizendo, ao candidato a artista, um amplo conhecimento do que foram os movimentos estéticos do Passado, a par daquilo que, na actualidade, se faz por todo o Mundo. Isto a um tempo, pois que a outro o qualifica tecnicamente, lhe dá a utensilagem imprescindível, para exercer com maior liberdade a criação própria. Por mais avançado que seja o seu pensamento, se a mão não estiver destra e não o acompanhar, a obra frustra-se inexoravelmente.

Mas logo no primeiro parágrafo falava de responsabilidade e dificuldade em analisar e comentar o trabalho dos jovens artistas. Na realidade, e dado que o tempo é limitado, o material em apreço é forçosamente pouco, frequentemente seguindo linhas indecisas, falhas de coerência, até porque ainda se procuram trilhos autónomos e originais. Ao vermos o trabalho de quem leva décadas de actividade, tudo é mais fácil, pois o material é mais abundante, as experiências de vida ricas e variadas, e os seus reflexos nas obras mais evidentes.

No caso vertente, o de Teresa Bravo, a dificuldade essencial decorre deste tempo breve, para nós, mas muito tempo certamente para ela – já mais de dez anos –, e que estou convencido é apenas uma nesga na ampla janela que começou a abrir, e através da qual se vislumbra uma paisagem distendida, com um límpido e distante horizonte, onde o Alto e o Baixo se encontram, nessa linha levemente curva para que caminhamos, e mais tarde ou mais cedo atingiremos.

A seriedade da apreciação das obras de quem começa exige-se a quem se abalança a fazê-la, pois, se positiva, pode ter efeitos nefastos; e se negativa, também os pode ter. Explico. Não é a primeira vez que vemos pintores, escultores, arquitectos ou outros cultores das Artes embandeirarem em arco e, subitamente, tomam uma posição irredutível de estrela, só porque um ou dois críticos lhe teceram loas. Inversamente, uma crítica destrutiva pode ser fonte de inibição, de afastamento até da prática, ou de forçado e anti-natural percurso estético. Daqui, a responsabilidade de que falava.

Teresa Bravo facilitou o trabalho que temos entre mãos, desde logo por ter seguido aquela prática salutar que indiquei acima, a de cumprir um curso superior, e ainda por cima numa escola com créditos firmados, com mestres credenciados e com provas dadas. É monótono fazer, fazer e fazer, repetir gestos vezes sem conta, quando achamos que já os sabemos fazer. Não é criativo copiar e tornar a copiar, até que a mão e os dedos se entumeçam. Mas é a única maneira de aprender a sério. E, depois, não é só a prática; é também a teoria, e a História das próprias Artes.

Em 2002 a nossa pintora licenciou-se pela Escola Universitária das Artes de Coimbra; mas não ficou por aqui, lançou-se logo em estudos pós-graduados, entrando para o Curso de Mestrado em Comunicação Estética. E isto apesar de ter ficado, desde logo, a leccionar Desenho Básico e História da Arte, na Escola das Artes de Coimbra.

Apresentar a exposição que preparou ao longo deste ano de 2006, para a Casa da Cultura de Coimbra é um prazer. E não é difícil perceber que é assim, pelo que já deixei escrito acima. Mas a gratificação vem de algo ainda mais importante e que nos toca de outra maneira. É que o produto final que agora fica patente à apreciação de todos é notável, mesmo excepcional. Teresa optou e bem por “escrever” uma história, um romance, talvez melhor, um ensaio sobre as formas. Como o artista da pena, o do PC portátil em mesa de café, desenvolveu uma ideia base, um fio condutor, que se pode resumir numa fórmula ou frase: não há limites para a Pintura.

E o que é que isto significa. Simples: os quadros – e quadros muito formais, com as características que a pintura de cavalete leva há seiscentos anos – não são mais do que um conjunto de variações sobre um tema, o do retorno ao Início, o da circularidade dos Tempos, o da perenidade das práticas ancestrais de esconjuramento ou propiciadoras de contactos com Seres outros, mortais ou imortais, vistos ou imaginados.

Numa visão desatenta, as pinturas de Teresa Bravo são repetitivas, mostram umas manchas sobre fundos monocromáticos, quando muito com algumas diferenças de tonalidades. Mas não é assim. Teresa baseou-se, para escrever todas estas páginas do seu livro, na pintura Pré-Histórica, nos testemunhos plasmados com as técnicas mais rudimentares, no interior das cavernas pirenaicas ou das montanhas do Centro da França, onde os nossos antepassados aproveitavam as formas rochosas pré-existentes e a sua coloração para aí gravarem, desenharem e pintarem homens e animais, os seus artefactos de caça, as suas divindades e muitos objectos do quotidiano. Essas crónicas primevas aqui recriadas são o fundamento da vida social tal como a conhecemos e vivemos hoje, a marca que enformou o devir, por dezenas e dezenas de milhares de anos. Assim, Teresa cobriu todas as telas com uma massa densa e irregular, com esses ocres e vermelhões, essas terras e verdetes naturais, como se se tivesse enclausurado em Lascaux, e cenobita, por castigo, repetisse gestos e gestos já tão longínquos, e ainda tão pouco esclarecidos. Assim, criou a sua caverna, o seu refúgio e, depois, tela a tela, escolhida a cor nova, a moldura ou filtro do tempo que corre, o dia do calendário, foi pacientemente cobrindo esse tesouro arqueológico, ficando apenas o essencial das memórias, num processo de criação em negativo, fruto de um impulso selectivo, agora imposto pela reelaboração do seu próprio cérebro e pela agilidade que, em cada momento, a mão destra e educada a obrigaram. É a Pintura ao contrário.

Este manifesto, esta declaração de apego, e simultaneamente esta homenagem aos primeiros pintores constitui uma das mais conseguidas e, simultaneamente mais belas exposições que temos visto, e não só em Coimbra. A coerência da temática, a coragem de não se afastar da linha previamente traçada, eventualmente para ceder ao público, é mais um ponto importante a creditar a favor de Teresa Bravo. E se conceptualmente e tecnicamente estes quadros são irrepreensíveis, eles não perdem uma outra dimensão da Arte, a procura da Beleza, sendo que esta é a mais fluida das categorias.

Mas o Belo não é eterno nem permanente; depende das modas, da educação do olhar, da predisposição de cada um em cada momento; da Latitude e da Longitude onde se cria e onde se frui a obra de Arte; de tantas coisas. Estou certo que nem todos estão preparados para apreciar devidamente a pintura de Teresa Bravo. Quantas pessoas não ultrapassaram ainda o patamar do Naturalismo oitocentista; que obviamente foi um dia também vanguarda, repudiada pelos adeptos do Neoclassicismo serôdio. Mas é sempre assim.

Por mim, prefiro este passo à frente de Teresa Bravo, aos tantos passos atrás com que reiteradamente somos confrontados em galerias e salas de exposição espalhadas por este país.

Pedro Dias
Professor Catedrático de História da Arte
Vogal Efectivo do CIHA-Comité Internacional de História da Arte